Capitão Fantástico e a busca vazia pelo "ensino correto"
- Clarissa Barcala
- 18 de nov. de 2019
- 7 min de leitura
O ensaio brilhante de Matt Ross sobre um choque cultural em circunstâncias incomuns e a disputa gerada por ele
*Esse texto apresenta spoilers sobre Capitão Fantástico
“Capitão Fantástico” é um filme de comédia dramática de 2016 escrito e dirigido por Matt Ross e estrelado por Viggo Mortensen, George MacKay, Frank Langella, Kathryn Hann, Annalise Basso e Samantha lsler, entre outros atores e atrizes. A trama principal segue Ben (Viggo Mortensen), um homem que, junto da esposa Leslie (Kathryn Hann), decide criar os filhos em uma floresta de Washington longe da civilização ocidental. Porém, a morte de Leslie obriga Ben e os filhos a voltarem à sociedade urbana estadunidense para o funeral e velório dela.
Após um início conturbado e aparentemente desconexo, com uma caça a um alce e um “ritual de passagem” de um dos filhos de Ben, o roteiro de “Capitão Fantástico” rapidamente fica alinhado e através de diversas cenas da família na floresta nos expõe como é a vida que eles levam, isolados das sociedades urbana e rural. Sabiamente, o roteiro nos insere no ambiente selvagem ao focalizar partes precisas do dia -a- dia da família, mostrando assim não só a relação entre eles, mas também como cada um dos filhos lida com esse estilo de vida. Enquanto Ben e o filho mais velho Bodevan (George MacKay) parecem mais relaxados nesse ambiente, o jovem Rellian (Nicholas Hamilton), com pequenos atos de inquietação e desconforto, exibe sua insegurança, mesmo que pequena, de estar ali. Nos primeiros 10 ou 15 minutos do filme, há claramente o desenvolvimento de um ambiente amigável e familiar, mesmo que turbulento e intenso, e o espectador é facilmente fisgado pelos momentos em família que o roteiro insere pontualmente. Esses momentos são uma arma perspicaz do longa de exibir o sentimento que paira entre eles através de pistas singelas, mas efetivas, que vão desde um olhar que transmite orgulho, passam por um sorriso sincero e chegam até o carinho fraternal e paternal. Após a notícia da morte de Leslie, porém, toda a estrutura é abalada. A partir daí, a fotografia adota tons mais frios, como o azul e o cinza, e começa a aproveitar mais as sombras, em contraste aos tons quentes do início. Essa mudança deixa claro o quanto a morte de Leslie afeta o ambiente construído. Mesmo quando eles continuam na rotina, o ar parece pesado, já que os atores expoem com maestria o quão amargurados os personagens estão, mesmo quando não há uma fala sequer na cena.
É, após essa notícia, que o filme levanta seu primeiro grande debate. Ao propor o conflito de ir ou não ao funeral de Leslie, o roteiro põe em xeque pela primeira vez um conceito aparentemente inerente ao ser humano: a ética. Afinal, na prática, a família Cash foi proibida de comparecer à cerimônia, o que torna a presença deles antiética. Porém, proibir a família de homenagear um membro também é antiético, causando assim um conflito de valores. O longa é exibido a partir do ponto de vista dos Cash e principalmente de Ben, nos levando a condenar a ação de Jack, pai de Leslie, de proibir a presença de Ben no funeral. Todavia, o filme coloca Jack como inescrupuloso e cruel justamente por mostrar apenas uma faceta do personagem, a faceta vista por Ben e pela maioria dos filhos. Mais tarde, ao explorá-lo melhor, o longa dá um pouco mais de humanidade a Jack e incita o espectador a mudar sua perspectiva sobre ele. Essa mudança no especador pode variar por diversos fatores, como envolvimento emocional com o protagonista ou identificação com um ou outro personagem, mas o debate, mesmo que em segundo plano, está presente em quase todo o filme.
Contudo, o que realmente fica em primeiro plano, é o debate sobre educação. O grande “ás” do filme é justamente a questão sobre os diferentes métodos de ensino e a eficácia de cada um. Frequentemente retratada como uma instituição socializadora ativa e intensa, a escola é, inevitavelmente, o primeiro grande contato do indivíduo com o bruto da sociedade. Conhecimento, hábitos e culturas cultivados por séculos são transmitidos na escola, e é no ambiente escolar onde a criança, além de aprender e absorver os conhecimentos que a sociedade julga necessários, é inserida num meio e aprende a conviver nele. Valores e costumes são transmitidos ativa e passivamente e, desse modo, os indivíduos são “encaixados” ou forçados a se “encaixar” na sociedade. Ben Cash, ao criar seus filhos longe da civilização estadunidense, dá a eles uma educação única, transformando todos em gênios ou experts da política, filosofia, química etc. Ele não transforma pessoas em “enciclopédias ambulantes”, como muitas vezes a escola “civilizada” faz ao passar conhecimento desnecessário e abusivo, mas sim os encoraja a pensar, debater, questionar e lutar pelas suas crenças. Teoricamente, Ben acaba com a ideia de que a escola é o jeito mais eficaz de preparar as pessoas para o mundo. Afinal, uma criança de oito anos possui um conhecimento de política que supera o de diversos adultos, e um jovem de 18 anos é fluente em 6 línguas e domina política e química como ninguém. Na cena em que Ben compara sua filha com os filhos de Harper, ele demonstra que a “escola de verdade” que a irmã de Ben e o marido dela propoem de nada vale ao ser comparada à educação complexa e profunda que os filhos de Ben receberam. A “escola de verdade”, usada como único método possível pela maior parte da sociedade, é mostrada como um sistema falido. Se a função primordial da escola é ensinar, ela não vale nada, já que longe da civilização, um homem sozinho ensinou a crianças o que alguns adultos não aprendem a vida inteira. O método de Ben tece sua crítica a um padrão no qual a sociedade insere as crianças através da escola. Tomando o Brasil como exemplo, não é incomum ver uma escola que incentiva o pensamento próprio ser chamada de doutrinadora. A “escola sem partido”, que vem ganhando forças no cenário educacional brasileiro, reforça o padrão que o método de Ben destrói com uma criança de 8 anos cujo conhecimento supera as escolas mais caras do mundo civilizado. A fragilidade desse método, entretanto, vai sendo lentamente semeada durante o longa até ter seu “baque”. Bodevan, o primogênito, ao conquistar sua “maioridade”, não demora a perceber que, por mais que seu pai lhe houvesse ensinado tudo que os livros poderiam oferecer, ele sempre seria um estranho na sociedade. A falta da socialização que a escola oferece vai sendo evidenciada à medida que a família se insere mais no contexto “civilizado” dos Estados Unidos. Por mais que alguns dos filhos estranhem o ambiente e prefiram continuar no velho estilo de vida já no começo, o jovem Rellian (cujo desconforto o filme trabalha desde os momentos iniciais) rapidamente recusa a educação do pai ao ser exposto a uma sociedade cujas normas ele não pôde absorver nos livros. Esse afastamento da educação dada pelo pai fica ainda mais evidente quando Bodevan refere-se a si mesmo como aberração, por não conseguir se encaixar na sociedade ocidental.
Está aí o maior triunfo de “Capitão Fantástico”: o longa desenhou sua trama de modo que levava tudo ao mesmo lugar. Ao tentar escapar de um padrão opressor e tóxico que a sociedade apresenta através da escola, Ben Cash apenas colocou seus filhos em outro padrão. Ele os prepara para tudo, menos para o básico: o cotidiano do estilo de vida ocidental (com foco no estadunidense) e, de repente, seu método elaborado e complexo se torna tão ineficaz quanto o sistema educacional falido que Ben critica. Desse modo, o filme mostra o quão vazia é a busca pelo “ensino perfeito”. O choque de dois extremos, cada um com seu ponto de vista de preparação para a vida, torna claro a ineficácia de ambos. As falhas são diferentes, em momentos diferentes e em proporções diferentes, mas ambos os métodos apresentam um “tropeço” que, de algum jeito, o torna supérfluo ou até mesmo inútil, seja na transmissão de conhecimento e na criação de pensamentos, seja na socialização e na inserção das pessoas na sociedade que, querendo ou não, predomina no mundo. Ben sente o maior impacto da sua grande falha no acidente que quase tira a vida de Vespyr Cash (Annalise Basso). Aqui, a trama utiliza uma metáfora única: a telha quebrada. Vespyr foi preparada a vida inteira para superar qualquer tipo de situação. Seu corpo é praticamente uma máquina, sua mente é afiada, seus conhecimentos são implacáveis e sua inteligência é rara, mas bastou um escorregão, uma telha quebrada, uma falha simples para que tudo isso quase fosse por água abaixo. Através desse acontecimento, o filme usa a telha quebrada como o que faltava no ensino de Ben. Por menor que parecesse, essa falha põe em xeque tudo que ele ensinou e deixa seus filhos com um ar desamparado e despreparado para o mundo real. É aí que Viggo Mortensen interpreta seu personagem com maestria: ele explora a angústia e a tristeza de Ben por várias perspectivas. A preocupação e a culpa pelo acidente envolvendo a filha o assolam, as palavras duras de Rellian o deixam amargurado e ressentido, mas o que mais desola o personagem é a decepção. Decepção pelo método que ele e sua esposa desenvolveram tão cuidadosamente que afinal, não era implacável como pensado. Ele não conseguiu impedir que sua família se despedaçasse e não preparou seus filhos para o mundo como gostaria. Ben, no final, se sente fracassado, o que só alimenta ainda mais a culpa. Ao abrir mão da guarda dos filhos, ele admite a derrota e vê o quão perigoso e ineficaz seu ensino pode se mostrar.
“Capitão Fantástico” é um ensaio genial sobre ética e educação. Ao explorar as falhas e acertos de dois estilos de vida extremos, o filme exibe os erros de um sistema educacional falido que precisa de uma reformulação para que as crianças não sejam apenas receptáculos de informações que elas rapidamente ignoram enquanto mostra que o “método de ensino perfeito” não passa de uma lenda. Por maior que seja o esforço de Ben para tornar seus filhos algo “fora da curva”, falta a eles a vivência que Ben não consegue oferecer. Seu primogênito finalmente sai livre para, enfim, tentar se inserir num contexto, enquanto Ben tenta reformular sua criação antes que seja tarde demais. No fim de tudo, a trama premia o espectador com um final “intermediário”, onde a família pode ter o melhor dos dois mundos. Apesar disso, não há certeza alguma se esse método funcionou. Afinal, basta uma telha quebrada para fazer tudo desabar.
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