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A composição de Persona e a formação de um dos maiores filmes da história - Análise e interpretação

  • Foto do escritor: Clarissa Barcala
    Clarissa Barcala
  • 21 de abr. de 2020
  • 11 min de leitura

Uma viagem intensa pela psique humana lapidada até a beira da perfeição inserida em provavelmente o melhor filme de Ingmar Bergman


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Elisabeth Vogler (Liv Ullmann), uma famosa atriz de teatro, tem um colapso mental durante uma peça e para de falar. Lakaren (Margaretha Krook), a psiquiatra de Elisabeth, designa a enfermeira Alma (Bibi Andersson) para cuidar da atriz em uma casa isolada perto da praia, deixando as duas sozinhas. Já que Elisabeth continua sem falar, Alma passa a conversar e desabafar incessantemente enquanto cultiva uma grande admiração pela atriz, até que começa a perceber que a relação entre ela e Elisabeth começa a tomar rumos pouco usuais.

Título Original: Persona

Direção: Ingmar Bergman

Roteiro: Ingmar Bergman

Fotografia: Sven Nykvist

Elenco: Liv Ullmann, Bibi Andersson, Margaretha Krook, Gunnar Björnstrand, Jörgen Lindström

Ano: 1966

Gênero: Drama, Suspense

País: Suécia

Idioma: Sueco



Estou consciente sobre mim e sobre tudo e, então, de repente, ou lentamente, minha consciência desaparece, apaga. E isso é não existir. E isso é um sentimento maravilhoso, que, por existir eu não estou existindo. E, naquele momento, nada pode acontecer comigo.”

- Ingmar Bergman



Análise

Diretor, escritor e produtor de Persona, Ingmar Bergman é de fato o grande nome por trás do filme. O sueco já era consagrado por filmes como Monika e o Desejo (1952), O Sétimo Selo (1956) ou Morangos Silvestres (1957), chegando até a vencer o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1962 por Através de Um Espelho, lançado no ano anterior. Gravado na ilha de Fåro, na Suécia, Persona segue uma estrutura que os filmes de Bergman anteriores haviam estabelecido: curtos, com elenco reduzido, um roteiro aparentemente simples e abordagens complexas e minuciosas longo do filme. Para conduzir a trama e serem as protagonistas, Bergman escalou duas atrizes: a primeira foi a sueca Bibi Andersson, que já havia trabalhado com o diretor em filmes como O Sétimo Selo e Morangos Silvestres. A segunda foi Liv Ullmann, uma atriz norueguesa de teatro que fez sua estreia no cinema justamente nesse filme.


Com um elenco enxuto, orçamento reduzido e um produto final de apenas uma hora e vinte de duração, Bergman concebeu o que posteriormente o professor e historiador de cinema Thomas Elsaesser chamaria de “o filme que é para os críticos o que o Everest é para alpinistas: o maior desafio profissional”. Persona seria chamado por diversos críticos de o magnum opus de Bergman e se tornaria uma referência para diversos filmes, como Clube da Luta (1999) ou Silêncio dos Inocentes (1991), tanto na esfera da ideia quanto na esfera estética.


Dentre os filmes de começos confusos, Persona certamente tem seu lugar especial. Ele começa com takes desconexos de um filme sendo queimado, de uma animação antiga, de um filme mudo, de uma aranha, de uma ovelha sendo morta e de uma crucificação, então passa para a cena de um menino que desce de sua cama e tenta alcançar a imagem borrada de uma mulher, que parece lentamente mudar. Porém, por mais desconexo que pareça ser essa cena inicial, Bergman discorre sutilmente sobre seus principais pontos ao longo da trama.


Após esse começo que deixa o espectador perdido, o filme parece entrar nos trilhos ao começar a desenvolver seu enredo, centrado na enfermeira Alma, interpretada por Bibi Andersson, e na atriz Elisabeth, interpretada por Liv Ullmann. Bergman, então, conduz a trama lentamente e, tirando vantagem de uma história aparentemente simples, ele se dá o tempo de explorar cada milímetro dela e de seus personagens principais – no caso, Alma e Elisabeth. Ao colocar as duas em uma casa vazia e isolada, praticamente livre de interferências externas, e explorar todos os cantos do ambiente e da relação entre as protagonistas, Bergman faz com que o espectador consiga de fato entender as personagens sem que elas falem muito sobre elas no momento – no caso de Elisabeth, sem falar absolutamente nada. Através dessa calma e da sensação de paz e solidão que Bergman implanta ao longo do primeiro ato e no começo do segundo, ele consegue atrair o espectador ao construir um ambiente envolvente e familiar, onde as personagens, especialmente Alma, se sentem relaxadas. Há, também, um extremo cuidado da fotografia em complementar essa sensação, já que as protagonistas não só são filmadas mais de perto, algo que aproxima o espectador das personagens, mas quase sempre são filmadas juntas, dando uma sensação de proximidade e intimidade sendo construída entre elas pelas circunstâncias, espontaneamente ou não. Essa proximidade começa a se intensificar, a ponto de começar a se desenvolver, confundindo o espectador, mas confundindo (com mais de um singnificado) as duas protagonistas. Com esse ambiente estabelecido e com uma relação clara em construção, o filme começa a mudar seu rumo. Devido a certos acontecimentos, o relacionamento entre Alma e Elisabeth fica abalado e passa a tomar rumos cada vez mais extremos. Toda a proximidade parece ser cada vez mais tóxica para ambas à medida que certas decisões são tomadas e certos acontecimentos se desenrolam. No terceiro ato, essa relação conturbada, confusa e amarga é o grande motor e combustível do ápice do filme. A externalização dos sentimentos e a personificação de ideias e feridas psicológicas culminam em dois monólogos de Alma – um mais longo e outro bem mais curto. Toda a calma que Bergman teve em construir um ambiente e desenvolver as personagens é recompensada nas cenas mais sentimentalmente fortes do filme, que não teriam nem de longe a força que têm se Bergman não tivesse a calma, o tato e a habilidade em desenvolver não só pessoas ao longo de seus filmes, mas também suas psiques e seus demônios. O roteiro que parecia simples à primeira vista revela toda sua profundidade ao tratar Elisabeth e Alma até a raiz: suas mentes são dissecadas, seus demônios são expostos, suas fragilidades são analisadas e suas personalidades são desmembradas de um jeito que o espectador, ao mesmo tempo que recebe tudo de uma vez, não tem nenhuma resposta dada de mão beijada. Tudo que o filme expõe é difícil de digerir e prexcisa de toda a atenção de quem vê.


A fotografia de Sven Nykvist é uma perfeição à parte. Desde o uso de fumaça no estúdio até o uso de espelhos para compor as cenas, a fotografia utiliza diversas ferramentas para parecer impecável e, assim, adquire um importante papel na composição das personagens, na construção de um ambiente, na elaboração da relação e na condução da trama em si. A posição das atrizes e da câmera, os modos de filmar, os planos longos e até a escolha dos figurinos são elementos que, ao se encaixarem, constituem cenas tanto essenciais para o desenvolvimento da trama e das interpretações que ela induz quanto visualmente estonteantes.


As atuações são a cereja no bolo. Margaretha Krook e Gunnar Björnstrand têm papéis pequenos que não exigem muito dos atores, mas entregam o que lhes é pedido e executam muito bem seus papéis na trama. As duas atrizes principais, porém, dão cada uma seu show particular. Tanto Bibi Andersson quanto Liv Ullmann recebem tarefas muito ingratas e difíceis. A primeira é a grande responsável por conduzir a trama, já que em quase todo o longa, ela é a única personagem que fala. Embora ouvir somente uma personagem por todo um filme possa parecer entediante e chato, Bibi Andersson consegue conduzir a história com maestria e dá a ela um ótimo ritmo. Mesmo se confessando, desabafando e falando o filme inteiro, a maior exposição da personagem ocorre nos atos mais sutis, nas frases mais discretas e nas pequenas ações de Alma ao longo de Persona. Mesmo com uma personagem que pode ser considerada indiscreta e nem um pouco tímida, Bibi Andersson entrega uma Alma minuciosa, com ações passionais mas com expressões e pensamentos envolvidos no mistério. Liv Ullmann também recebe algo muito difícil: conduzir sua personagem e, ao lado de Bibi Andersson, boa parte da trama, sem praticamente nenhuma fala ao longo do filme. Em seu primeiro trabalho fora do teatro, a performance de Liv Ullmann é tudo, menos teatral. Sua atuação está nas suas expressões, em seus movimentos, em suas ações e, sobretudo, em seu olhar: tudo é friamente calculado tanto pelo roteiro quanto por ela para que uma personagem misteriosa e complexa cuja composição reside quase inteiramente nos detalhes.


Persona é um filme difícil. Lento, estranho e confuso, são essas as características que Ingmar Bergman reúne para fazer uma obra-prima que pleiteia a perfeição, já que se dá o tempo necessário para desenvolver personagens, ambientes, relações e psiques que constroem um filme que, embora pareça confuso, é extremamente decidido do início ao fim. Seu final aberto é a conclusão perfeita de uma hora e vinte de um filme que, segundo Bergman, é melhor ser sentido do que entendido. As peças que constituem o filme parecem ser estranhas e confusas se olhadas isoladamente, mas ao analisar todo o conjunto, tudo se encaixa e guia o espectador para diversas interpretações. Com um ritmo excelente, atuações incríveis, uma fotografia estonteante, um roteiro aparentemente simples mas muito complexo e uma composição cuidadosa, Persona foi, de fato, um marco não só na carreira de seu diretor, mas na história do cinema, resultando no que o próprio Ingmar Bergman chamou de “um poema em imagens”.



Interpretação

Jamais serei como você. Eu mudo o tempo todo. Pode fazer o que quiser, você não consegue me alcançar.”


*Atenção: essa parte contém spoilers

Bergman, desde o começo, se recusou a dizer o que o filme significava: nem para o público, nem para a imprensa, nem para as atrizes, nem para o diretor de fotografia. Ele afirmou que, embora tivesse sua ideia do significado da história, a audiência deveria ter suas próprias conclusões, e que deveria sentir o filme antes de entendê-lo.


Antes de destrinchar o significado (ou um dos significados) do filme, precisamos entender a etimologia e o significado de duas palavras-chave para o enredo do filme. A primeira, obviamente, é o título: Persona. Persona é uma palavra latina que significa máscara, e que deu origem ao termo grego homônimo que significava o personagem ou classe social que o ator representa no teatro. Para a psicologia, Persona é a face social que o indivíduo apresenta para o mundo, “um tipo de máscara, designada para por um lado deixar uma impressão definitiva nos outros, e por outro ocultar a verdadeira natureza do indivíduo”, segundo o psiquiatra Carl Jung. A segunda palavra é alma, o nome da enfermeira, palavra derivada do latim que significa ser, vida.

Na cena inicial, confusa e desconexa, Bergman diz duas coisas. Ao colocar o espectador “dentro” de um projetor e, depois, queimar o filme, o diretor lembra que aquilo é apenas um filme – uma máscara que tenta replicar a realidade. Então, as cenas confusas da crucificação, do pênis ereto, da ovelha morrendo, da animação, da aranha e do filme mudo, que se forem analisadas isoladamente parecem sem sentido algum, analisadas em conjunto expressam uma mistura de sentimentos e elementos que são tratados no filme e presentes na vida real, como morte, vida, sofrimento, luz, escuridão etc. Nessa cena inicial, Bergman induz o espectador a, antes de tentar tirar conclusões e entender a mensagem e o significado da história, sentir tudo que o filme apresentou, dando na interpretação final muito valor ao sentimento único de quem assistiu.


Partindo dos conceitos sobre persona e alma e da mensagem passada pela cena inicial, Persona se revela um filme sobre a personificação do embate entre duas partes da personalidade – ou entre duas personalidades diferentes. A cena da criança, que ocorre logo após a cena inicial, representa o filho de Elisabeth que, por não ter uma relação próxima com a mãe, não consegue reconhecê-la ou alcançá-la, já que o garoto estende a mão para uma imagem borrada que hora é Elisabeth, hora é Alma. Porém, a criança também representa o público que, no começo do filme, é inexperiente como uma criança, e não consegue fazer a distinção entre a personagem real e sua persona. Começando a trama para valer, Bergman deixa pistas ora sutis, ora escancaradas sobre os papéis das personagens no que a trama quer nos passar. O nome da personagem de Bibi Andersson é Alma, que significa vida, ser. A personagem de Liv Ullmann é uma atriz de teatro, fazendo referência a um dos significados da palavra persona, e seu trauma ocorre na gravação de Electra, uma famosa peça do teatro grego, remetendo ao significado grego da palavra.

Ao colocar Alma e Elisabeth em uma casa isolada, Bergman faz uma metáfora a uma briga psicológica, personificada durante o filme. Elisabeth, a atriz, torna-se a persona de Alma, que até chega a comentar “eu poderia ser você, se tentasse”. Aqui, o diretor cria uma metáfora para quando o indivíduo idealiza uma personalidade perfeita, admirável e inatingível, sentimentos refletidos pela admiração que Alma cultiva por Elisabeth e seu trabalho. Porém, quando as duas personagens ficam isoladas em um ambiente praticamente livre de interferência externa, (ou quando as duas faces da personalidade ficam cara a cara, sozinhas, na mente) elas passam por situações conturbadas. O indivíduo não sabe mais quem é ou qual é sua real identidade, pois ele idealiza em sua persona alguém que ele não é, e age como essa pessoa na sociedade, criando uma imagem totalmente diferente de quem realmente é. Essa confusão na personalidade é refletida na cena em que o marido de Elisabeth aparece: embora quem ele conheça seja Elisabeth, e fora por ela quem ele apaixonou, ele abraça Alma e, por ser cego, ainda acha que está abraçando a atriz. Tal cena reflete como, em certo ponto, não é mais possível distinguir a pessoa real de sua persona, porém, ao mesmo tempo, cria uma clara divisão entre ambas, já que a persona é alguém diferente do indivíduo real. Seguindo com os problemas com a relação entre Elisabeth e Alma, a persona passa a revelar algo que o indivíduo não queria, como a orgia que Alma confessa e Elisabeth conta, causando mais um ponto de ruptura entre as partes da psique. Portanto, ao mesmo tempo que elas parecem se fundir, vários pontos de conflito parecem causar uma divisão clara entre elas. O conflito definitivo acontece no final do filme, quando há o monólogo de Alma sobre o filho de Elisabeth. A persona é confrontada pelo indivíduo: ela, então, passa a se ver vazia, fraca, limitada, controlada. O desejo de ser mãe não partiu dela, mas sim da pressão da sociedade que afirmava que uma mulher de sucesso como ela precisava da maternidade para ser completa. Elisabeth inveja o aborto que Alma teve quando era mais nova, refletindo a inveja da persona em como o indivíduo se desprendeu do desejo de ter um filho, algo que ela foi obrigada a ter. O desprendimento do indivíduo, porém, causou o distanciamento entre a mãe e a criança, que não consegue saber se sua mãe é a persona ou o indivíduo. Tomada pelo sentimento de estar vazia, de ser fraca e impotente, e de ser frequentemente controlada, a persona tenta absorver a essência do indivíduo (quando Elisabeth bebe o sangue de Alma), mas essa tentativa é inútil. Alma, o indivíduo, confronta a persona mais uma vez, ao falar para Elisabeth: “Jamais serei como você. Eu mudo o tempo todo. Pode fazer o que quiser, você não consegue me alcançar”. Essa frase expressa como o ser é algo individual, independente, que não depende de nada para ser quem é, tornando a persona algo fraco e vazio quando comparada a ele, já que não há nela a originalidade que há nele.


Então, na cena final, Alma, completamente sozinha na casa, arruma suas bagagens e vai embora. Livre, o indivíduo volta a tomar o controle, ao arrumar a mente completamente independente. Quando o filme volta a mostrar Elisabeth, é apenas pelo teatro ou pela lente da câmera de um set de cinema, dando a entender que a persona voltou a ser apenas uma máscara, não mais algo fundamental na personalidade do indivíduo. Porém, Alma arruma seu cabelo do mesmo jeito que Elisabeth arrumou, dando indícios que talvez a persona esteja mantendo sua influência no indivíduo, ideia reforçada quando a criança volta a aparecer, e a imagem da mulher continua embaçada.

Persona traz um ensaio complexo, minucioso e genial sobre a psique humana e como ela é afetada em devidas circunstâncias por devidos elementos. Bergman nos induz a pensar, mas também a sentir o que o filme nos causa, explorando cada detalhe de suas personagens e de suas ações ao longo da trama. Através de um poema em imagens, Bergman nos lembra que assistimos somente a um filme ao mostrar o filme sendo queimado e o set de gravação, mas, ao construir um filme como uma máscara da realidade, ele também nos lembra que vivemos constantemente sob tal máscara.

 
 
 

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