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A dualidade quase paradoxal de Dois Papas – Análise e Interpretação

  • Foto do escritor: Clarissa Barcala
    Clarissa Barcala
  • 15 de fev. de 2020
  • 5 min de leitura

Um ensaio genial sobre a relação antagonista entre Ratzinger e Bergoglio e seus complexos desdobramentos

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Título Original: The Two Popes

Direção: Fernando Meirelles

Roteiro: Anthony McCarten

Elenco: Jonathan Pryce, Anthony Hopkins, Juan Gervasio Minujín, Sidney Cole

Ano: 2019

Gênero: Drama


Poucas figuras são mais ovacionadas e ainda assim mais atacadas do que a do Papa. Frequentemente visto como a personificação da Igreja Católica, o Santo Padre torna-se o rosto, o cérebro e, principalmente, a alma da Igreja. É a partir daí que Dois Papas inicia seu brilhante ensaio sobre a figura quase institucionalizada do Bispo de Roma.


Dois Papas acompanha a conturbada e polêmica fase da Igreja Católica, com escândalos de corrupção e pedofilia, além de um conservadorismo extremo, guiando a um distanciamento entre a Igreja e os fiéis. Incomodado pelas divergências ideológicas extremas entre suas convicções e a forma que o Papa Bento XVI guia a Igreja, o então cardeal Jorge Bergoglio decide se aposentar. Ele é, porém, surpreendido por um convite do próprio Papa para visitá-lo em Roma.


Logo em seu começo, o filme trata o argentino Jorge Bergoglio, que viria a tornar-se o Papa Francisco, e o alemão Joseph Ratzinger, então Papa Bento XVI, como água e óleo. Na eleição que entronou Ratzinger como o Bispo de Roma em 2005, o filme já trata Bergoglio como o principal rival ideológico de Joseph, já que, dentre os reformistas, Jorge tinha a maior popularidade. É nessa passagem que a rivalidade entre o alemão e o argentino é instaurada, através da exposição de seus respectivos ideais e popularidades entre os cardeais votantes. A eleição, mesmo conturbada, determina Joseph Ratzinger como o novo Papa Bento XVI, dando continuidade à linha conservadora que a Igreja vinha adotando ao eleger um Papa com posicionamentos tão tradicionais quanto o de Karol Józef Wojtyla, o Papa João Paulo II, antecessor de Ratzinger.


Sob os ideais do alemão, a Igreja vai lenta e efetivamente se afastando dos fiéis. O pontificado de Ratzinger se recusa a acompanhar a evolução da sociedade, atendo-se às tradições originais da Igreja e indo contra a evolução do mundo à sua volta. Para piorar a imagem da Igreja, há a imersão do Papa em inúmeras polêmicas que vão desde pedofilia, passando por corrupção e culminando na prisão de um dos assessores de Ratzinger por abuso. Jorge Bergoglio, cardeal assumidamente reformista, fica alarmado com o rumo da Igreja sob o pontificado de Bento XVI e envia seu pedido de aposentadoria ao Vaticano. Por não ser respondido, ele compra uma passagem para Roma para falar com o Papa, mas recebe um convite deste para uma visita.


É aí que o filme investe em peso nas divergências entre os dois. Os ideais conservadores de Ratzinger e reformistas de Bergoglio são expostos de forma natural e firme numa discussão entre eles no jardim da casa de verão do Papa. O argentino parece sair por cima na maior parte do debate, apresentando novos argumentos a cada esboço de fala do alemão, evidenciando que a Igreja Católica não pode continuar ignorando a evolução da sociedade sem pagar o preço enorme que é o distanciamento dos fiéis. Porém, não há, em momento algum dessa discussão, qualquer indício de uma briga. Nela, reina o respeito entre os dois, com uma extrema cautela de ambos para que o clima fique estável. Porém, tratá-los apenas como opostos é uma tarefa simples, pois seria ater-se apenas à vida pregressa do filme. Meirelles vai além do duelo entre dois extremos e vai cautelosamente aproximando-os ao longo da trama. A cena em que Ratzinger toca piano enquanto os dois falam sobre música é um perfeito exemplo de como os dois conseguem desvencilhar-se de seus ideais para constituir uma boa relação.


Desvencilhar-se, porém, é o grande triunfo do filme. Há, no longa, uma clara distinção entre a figura Papa e a pessoa Papa. Bento XVI e Joseph Ratzinger são tratados como pessoas diferentes, com personalidades diferentes e ações diferentes, cada uma com suas limitações, sejam elas éticas, moreis ou até de poder. O distanciamento entre a Igreja e os fiéis é refletida no distanciamento entre Bento XVI e Ratzinger. A figura do Papa que se isola nos privilégios que a vida de Bispo de Roma oferece, que come sozinho, que mal fala com os funcionários e que carrega consigo todos os luxos possíveis retrata que Ratzinger, literalmente, se perdeu no personagem. Não há mais a distinção entre a pessoa e a figura na mente do alemão, deixando-o angustiado a ponto de não conseguir mais ouvir Deus. O filme consegue, aí, uma tarefa muito difícil: humanizar o Papa Bento XVI, dando-o uma visão mais intimista e explorando seus erros, acertos e pecados que Ratzinger nunca pestanejou em assumir. Deus só volta a falar com o Papa pela voz de Bergoglio, como o próprio Joseph assume. Através da voz de um homem muito ligado ao povo, que acompanha a evolução dele e prega, acima de tudo, a aceitação e o perdão, o filme cria uma metáfora onde a pessoa Joseph Ratzinger alerta Bento XVI que os dois estão perdidos. A pessoa Papa confronta a figura Papa, criando no Bispo de Roma uma angústia muito bem retratada pelo genial Anthony Hopkins que, junto do roteiro, assume a tarefa de humanizar o Papa Bento XVI com uma atuação magnífica. A cena chave que expõe essa dualidade que corrói Ratzinger é a confissão do Papa. Aqui, finalmente a pessoa sobrepõe a figura e admite seus erros e pecados, pedindo o mais sincero perdão e mostrando-se perdido. No encontro com os fiéis, após a confissão, Joseph parece perdido, como se tivesse se esquecido do povo, mas inexplicavelmente feliz, pois, ali, houve o reencontro da verdadeira identidade de Ratzinger. Para aproximar o espectador ainda mais do então Papa, o diretor filma o personagem de perto e, através da aproximação física, o filme atinge uma aproximação psicológica.


Jorge Bergoglio assume dois papéis no filme: o cardeal argentino que veio a ser o sucessor de Bento XVI e a parte humana do Papa que ajuda Ratzinger a se reencontrar. Como cardeal, o personagem também é humanizado. Essa tarefa é mais fácil do que humanizar Joseph, já que Bergoglio sempre foi infinitamente mais próximo do povo: assiste futebol, anda de transporte público, vai a restaurantes, interage com os fiéis, acolhe e conforta as pessoas. Porém, o passado conturbado do argentino dá uma outra visão a essa humanização. Envolvido na ditadura, Bergoglio é exilado dos jesuítas e é obrigado a interagir ainda mais com o povo para evoluir. Aqui, Jorge assume seus erros, suas falhas, seus arrependimentos e, acima de tudo, sua hipocrisia. Hipocrisia esta que é apenas reflexo da culpa, já que Bergoglio não consegue se perdoar do mesmo jeito que perdoa os pecadores que correm até ele para se confessar. O argentino passa por uma longa e dolorosa jornada de evolução e aceitação e somente com essa experiência ele consegue guiar Ratzinger pelo mesmo caminho, tornando-se uma representação do lado humano do Papa Bento XVI. Porém, simultaneamente, Bergoglio só consegue atingir o perdão com a ajuda de Joseph, dando uma via de mão dupla à relação entre os dois. Também filmado de perto com o mesmo intuito de antes, ele é raramente visto de longe nas filmagens. Uma das raras vezes que isso acontece é quando Bergoglio entra na Capela Sistina, e o filme não faz isso sem motivo. Nesta cena, Bergoglio representa o povo através de seu espírito popular, e a Capela é a representação da Igreja. O filme, ao filmar o então cardeal de longe, reflete o distanciamento entre o povo e a Igreja. Porém, a cada passo que Bergoglio dá, a iluminação da Capela aumenta, como se o argentino desse uma nova visão à Igreja. Jonathan Pryce justifica totalmente sua indicação ao Oscar de Melhor Ator pois, mesmo com um trabalho mais fácil que Anthony Hopkins no filme, recebe maior atenção e interpreta as diversas faces de Bergoglio com maestria.


Dois Papas retrata muito bem o distanciamento da Igreja e o quão doloroso pode ser essa reaproximação. Os reflexos desse distanciamento causam também uma disputa interna no líder da Igreja, que já não consegue mais distinguir entre ele mesmo e o personagem do Papa, disputa essa que só pode ser remediada ao admitir seus pecados e abrir seu coração para a mudança, por mais contraditória que ela seja.


 
 
 

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